Capítulos finais

Há um ocorrência singular nas despedidas, as similaridades nos gestos e palavras que nascem abruptas no abraço da partida e morrem desmanchando-se quando tudo é ida.
Nos cantos; amontoados de roupas perdidas e esquecidas. Plano de fundo natural de onde existe vida. A prevalência da cor preta fazia esconderijo em si, como quem esconde a face quando os acenos são carregados de resistência. Os detalhes das roupas variavam o tom, mas, a composição final não alterava-se; bastava lançar o olhar tangencialmente para o reflexo ser uma projeção particular de cada um. Em minha mala o recorte fino da realidade: a organização quase compulsiva. Cores, tamanhos, tecidos, valores sentimentais. Cultivo amores por tudo que possuo, por cada figurante da decoração monocromática do meu quarto e também pelos contrastes. Desde muito nova tinha o costume de colecionar papéis; bilhetes, cartas, figuras e frases que escrevia em algum recorte. Em uma caixinha vermelha guardava os fragmentos, que mesmo com esforço, eram pouco fiéis às histórias das quais traduziam em matéria, ínfimo, os valores do momento vivido. E a caixinha, por espanto, em sua pequenez era um compilado de resumos significativos de toda uma história; da qual brotava orgulho em meu peito e um sopro suave e úmido das sutilezas que despertam-me o riso.
Em coro, criavam-se novos anseios que coloriam o monocromatismo do qual há muito já fazia parte.
No entanto, na ida a mala traduzia os sentimentos que assolavam na véspera. E ida é hora de lamento, beijo e abraço. Porque estender as memórias na cama é coisa solitária, um pouco triste, pois, desmonta-nos. Costumeiramente, a plataforma setenta e um- que já havia virado causo pela coincidência- transformar-se-ia em ponto de partida; enquanto as luzes, os carros, toda a gente figuravam a distância conforme os pneus, vagarosamente, afastavam-me dos acenos e vozes. O que restava era a música baixinha e a nostalgia da lágrima que teima em cair quando a vida que chega e parte, passa pelos vidros. Agora, os números são pontes, assim como as malas nos pés que servem de apoio para as lembranças que ligam passado e presente à um possível futuro. Adeus.

“São Paulo é um buquê”

Desde que era pequena cultivava a admiração pelas ruas caóticas de São Paulo. As viagens esporádicas eram convites poéticos para que pudesse alimentar meu sonho de um dia morar em um apartamento compacto de uma rua engarrafada. Circunstâncias que só presenciava na Capital! Contudo, durante um ano inteiro alimentei amores secretos e platônicos por alguém que a habita até hoje.
O encontro casual de janeiro frente ao Teatro Municipal em seus tons de vermelho e creme, também no plano sonoro suave dos violinos na aula de terça-feira. O chapéu de modelo desconhecido por mim escondendo a total falta de cabelos, um charme a parte, com a barba em tons cinza e ouro modelando o rosto quadrado. Brilho natural na pele. Sorriso aberto sem nenhuma vergonha, dentes pequenos e ameaçadores típico de gente que guarda um animal dentro de si. Os olhos eram pequenos, claros, alegres e ousados na hora de analisar o outro. Um convite indecente para vê-los mudar de cor e tamanho- porque, sempre ouvi dizer que meus olhos mudam enquanto transo- possivelmente os dele também. Estendeu a mão e pude ver duas almas livres flutuando sobre as ruas da minha cidade sem trânsito, obviamente a minha estava corada pela timidez que antecede qualquer coisa, no entanto em alguns encontros já fazia-se atrevimento. Por isso sentia-me bem, enquanto dentro de mim, ele olhava com olhos de águia em sua superioridade emocional e de todas esferas, ganhando frases minhas que normalmente não diria a outra pessoa. Para, por fim, repousar sonolenta em seu peito e alisar os pelos metálicos e suas sardas tímidas na pele, sorrindo calada, ouvindo declamar poesias e falar sobre Fernando Pessoa, enquanto tentava colar o rosto no meu. Retirava missivas do bolso a cada final de encontro para aguçar minha curiosidade, a letra tinha uma certa rebeldia e calma que dispensavam qualquer adorno no envelope.
Meus olhos se abriram, mas a cama não era a mesma. Os dias passavam e logo estaríamos juntos novamente, o caminho plácido transformava-se em um protótipo da Capital. O frescor do dia mudava conforme a distância entre nós diminuía, havia algo inerente as cidades grandes e agora eu poderia sentir: o movimento. Não só dos carros, das bicicletas, dos transeuntes ou a correria comum da hora do rush. O movimento de sensações! Aquelas que gradativamente eu poderia entender de forma plena, a sensação dos lábios molhados no lóbulo da orelha a sibilar frases inteiras de uma beleza ímpar. E então, invadir um no outro com a permissão de quem adentra a casa de um parente muito próximo e até mesmo na intimidade do próprio quarto. Em transe por vê-lo trazer presentes vivos de São Paulo: o ritmo pulsante da Rua Augusta, a sofisticação da Avenida Paulista, os cheiros da Oscar Freire e toda poluição quando me deixava chateada, como também os roubos que fazia em mim diariamente. Meus pedaços atravessavam a Anhanguera e seguiam rumo ao prédio branco onde morava. Só assim notava o quanto poderia ser intragável amar um humano tão vivo em uma cidade que não dorme.
O velho vício:
alimentar amores para a posterioridade.

Trilhas de ano velho

O prólogo do causo se desenrolou na semana de férias, no clima festivo de fim de ano na cidade de Ubatuba que tão logo reverteu na possibilidade de explorar de fato a cidade desconhecida. Faltavam dois dias para o ano novo e o aglomerado já havia transposto o suportável na minha ótica não-tão-fã-da-muvuca. Já havia gasto minhas horas do dia na água salgada da Praia Dura, escolha proposital, entre risos e alguns mergulhos com o corpo nu. Olhando para o céu e admirando a imensidão contrapor com a minha insignificância sendo engolida por outra imensidão: e aí, sentindo-me viva.

Uma segunda que esgotou-se nas aparências de sábado, porque além das apresentações musicais ocorrendo em Maranduba, logo ao lado, havia o entra e sai de moradores no condomínio que em épocas sentimentais propunham um jantar para enterrar o ano velho. Rituais agradáveis de gente acostumada a recorrer a qualquer tipo de auxílio para uma vida próspera. Gentilezas, união, retidões, etc. Os olhares se cruzavam, as mãos entrelaçavam e a pele comumente gelada da pontinha do nariz tocavam-se: um ano estava acabando, outro deveria começar. Nessas obviedades da noite de segunda tive a ideia de retirar o tênis da mala, assim como as meias para uma corrida final. Alguns perguntaram quem levaria tênis para uma cidade que estava tão quente quanto o inferno, ah o inferno, e ainda dispensaria a programação normal de show’s na orla da praia. Quem?! Atravessar a portaria ganhando olhares de estranhamento, possivelmente até então ninguém havia tido a brilhante ideia de calçar as meias, os tênis e aproveitar a liberdade da praia, pouco antes da meia noite, em uma boa oportunidade de liberar energias… Cada um com as suas manias!
E então, correndo na cidade vizinha ia explorando o caos do trânsito e da cultura diversificada, não é necessário cruzar o mundo para notar a discrepância de costumes. A maioria já estava nos bares ao som do tão popular reggae, em contraste com outros amantes de um som bem mais agitado. Uma galera reunida em mesas de madeira sob a lua, ainda com o calor infernal, esperando a hora de celebrar o novo. Os círculos formados pelos copos nas mesas diziam mais do que aparentavam: boa parte ali estava querendo antecipar uns dias. Porque parece que novidade é tão mutável que permite uma renovação completa do ser, bobagem. Eu sabia que no ano seguinte continuaria correndo em cidades vizinhas, assim que a disponibilidade permitisse, como também continuaria trocando show de pagode por uma hora solitária. Digo mais, continuaria desconfortável com a insistência dos grãos de areia no corpo e nos pés mesmo após ao banho, ainda que estivesse em Cancún e suas águas límpidas. Em qualquer lugar me sentiria intolerante a algo pegajoso no corpo, a velha metáfora.
Por fim, agora era o começo das garoas de fim de noite. As gotículas caindo no rosto junto ao suor com seus resquícios poluentes, aumentando gradativamente a frequência com que era tocada- não só a rapidez da minha corrida como também a velocidade da chuva cortavam as ruas-. Os buracos típicos de cidade de praia eram obstáculos íntimos dos meus pés- a visão já não era necessária-… nos segundos finais do dia, já havia subtraído e somado nas ruas coisas tantas que o ano novo poderia compensar. A sola do meu tênis, as gotas do meu suor, as energias por terra e o fruto sagrado que nascia do solo desconhecido: em tempo, aprendi que no ano novo poderia transportar minhas raízes.

Souvenir em gavetas

Há um souvenir que me remete aos tempos de infância, tempos dos quais tive grande receio dos guardados pelo efeito que poderia gerar no futuro.

Para descrever esses tempos remotos posso ser breve: um dia na praça de uma cidade vazia, devorando o resto da pipoca sob a única luz que era vinda da lua. E então, a boca já estava salgada e partida de tal modo que a água da garrafinha ao lado não mataria minha sede infantil. Quase em súplicas olhei para o meu pai que também deveria estar com os lábios salgados, mas em sua alta idade não transparecia o desconforto. “Quem sou eu diante desse céu imenso que mal posso suportar o gosto salgado de uma simples pipoca?” Acontece, disse, que muitas vezes esse gosto insuportável pode ser suportável para outra pessoa: “Totalmente provável, baby.”

Mas, ainda que o suportável variasse eu não poderia ser gigante ao mundo se ainda guardasse em mim o desconforto ridículo da boca salgada. Porque foram realmente raras as vezes que tive coragem de devorar sozinha um pacotinho de pipoca, com isso me julgava incapaz de superar qualquer coisa sozinha. É só uma pipoca? Sim, mas ela acabou com meus lábios e está me deixando aflita com a possibilidade de comê-las novamente perto dos meus coleguinhas… Eles as comem tão bem, com tanto gosto e saciedade que não posso entender porque não sou como eles: crianças. Curiosamente não sou como os adultos que também apreciam o salgado da pipoca! Diante disso posso ser configurada como uma carta perdida nesse baralho imenso e estou descartada até que encontrem minha função. Por isso, em um ato simples, coloquei o pacotinho da pipoca no bolso logo depois de anotar em letras garrafais o dia e o mês.  Desde então tenho guardado em uma gaveta a lembrança de uma noite dualística, na qual perdi e recuperei minha infância quando gigante na capacidade de pensar não pude registrar porque ainda não saberia escrever com exatidão.

Hoje o faço, mesmo que não tão bem quando imaginara.

Tempo e descaminhos

Algo impetuoso no início mas silencioso durante e após; ainda não poderei dizer sem dúvidas ou com expressões pouco desconexas. Ainda mantenho a despedida de certo modo arrogante como meu espírito por vezes pobre, mas não serei artista em toda extensão das diversas possibilidades. Existe aqui um certo rancor da mágoa e de todos os verbos que não puderam ser conjugados. Houveram poucos, eu sei.

Sobretudo há uma ânsia prodigiosa adormecida no mais profundo do meu ser, onde acumulado está uma crosta endurecida de poeira e tudo que ainda não foi experimentado. Agradeço, embora não fosse necessário a presença e o altruísmo de que nunca ouvi falar ou sentir verdadeiramente. Existia, não sei agora, uma característica positiva inerente a todas suas frases e pensamentos que compunham das mais simples ideias aos mais complexos duelos. Eu ainda sei que essa chama ardilosa está lhe causando alguns desconfortos que serão posteriormente amenizados. Tudo na vida tem prazo de validade, contudo a maior enganação está no rotulo latente que nós, sabiamente, esquecemos de conferir.

Alguém como eu falando sobre a vida demonstra que não há discrepância entre o superficial e o profundo quando tratamos do cerne que nos justifica. Estou feliz, e creio que também está. Não podemos deixar que a vida subtraia de nós o que foi somado em poucos anos, isso é inegável e o último favor que lhe peço. Fomos contrariados e contraídos diante das possibilidades que haviam para nós, mas diante de um abismo não existe qualquer chance de recuo. O pulo é certo e já foi dado. De maneira insipiente como desde o princípio, estávamos fadados a um destino sofrível e sujo como esse. É o fim do fim.

A fantasia se tornou tão real quanto o palpável. Creio que tenha colaborado para esse medo final que precede a indiferença. Portanto eu espero que um dia não te encontre caminhando na orla da praia enquanto fuma seu cigarro e entre as fumaças observa as moças em suas particularidades, seminuas, sob o sol. Não quero, para que assim quando me veja não tenha o desconforto de esquivar-se da vontade de olhar e verificar que eu estava certa quando dizia que o tempo não só ameniza como também desfaz todas as coisas.

A tenda

O sol queimava a pele, queimava dentro do corpo esmiuçado de dores na quarta-feira de términos. Os passos eram lentos, sofríveis e embaçados criando miragem de esperança em meio a miséria que embalava minha silhueta naquele caminho tortuoso.

Conforme a dor invadia o tempo mudava, a sincronia com meu desequilíbrio fortificava o laço com aquilo que chamam de cosmos. O tempo mudava, as nuvens encolhiam tornando-se massas disformes e sem beleza no céu cinzento. Eu estava aprisionada na âncora de porcelana, quebradiça, vulnerável em todas esferas. Os homens olhavam perplexos, as mulheres espiavam em tom de comiseração. Meu roteiro individual afastava o calor do peito de qualquer pessoa, eu tive pena e asco daquele turbilhão.
O céu comprimia os desatinos do meu corpo, todas minhas fontes de energia estavam escassas. As gotículas da chuva começavam a molhar minha testa com pingos pesados de compaixão. O primeiro sentimento genuíno que puderam direcionar à minha miséria. O segundo; a cobertura da tempestade que caía em minha volta, a proteção do vento aflito batendo em minha pele e a proteção dos pés abandonados. Houve um sopro de entusiasmo quando em meio a água feroz que caia, alguém acenou de dentro do carro. A vida por fora das coberturas artificiais, a vida por fora da opacidade das máscaras. Dentro da chuva uma alma lânguida sendo coadjuvante da própria vida, sentindo no mesmo segundo todas contrações de dores que um corpo poderia suportar. A chuva que escorria por dentro. A falta de continuidade das frases. O modo grotesco de estar impossibilitado diante de si, a certeza do fracasso em meio a um abandono.

Elo entre mundos

tumblr_mysucg7xax1qhkmt3o1_500tumblr_mysucg7xax1qhkmt3o1_500Tive o desprazer de conhecer Luiz no dia em que um parente seu havia falecido. Lembro que era 2011, e eu havia mudado o trajeto que deveria ter feito. A avenida estava transbordando pessoas, todas as mesas estavam ocupadas e algumas moças e alguns rapazes ficaram em pé esperando os funcionários improvisarem um canto confortável para os clientes. Lembro também de ter notado os olhares intolerantes para Luiz, como se o espaço ocupado por ele fosse mais do que ele merecia e poderia preencher. Havia um vazio ali, era certeza.

Ensaiei um modo de conversar com ele, mesmo sendo retraída, imaginei diversos desfechos possíveis caso eu me aproximasse e todos eles foram negativos. Talvez a ideia não correspondesse com os ideais noturnos, ébrios e descompromissados de uma sexta a noite. Assim também pensavam três ou quatros rapazes que insinuaram uma briga próximo a mesa de Luiz. Foram movimentos rápidos e quando pude notar já estava segurando o braço dele e propondo sair do bar. Saímos juntos e percebi que ele havia bebido um pouco, talvez tivesse fumado também mas isso nunca foi esclarecido.

“Obrigado por me tirar de lá, não seria uma boa terminar a noite com uma briga.” Enquanto falava mantinha os olhos baixos tão recaídos e distantes  que eu não poderia dizer se era efeito de algo ou angústia. Aproveitei que não precisava olhar nos olhos e também fiquei cabisbaixa. Ele foi gentil, se desculpou por não estar sendo boa companhia e por ter atrapalhado meu caminho. Eu mudava de assunto quando a conversa chegava nesse tom, e falava sobre as casas silenciosas e vazias antes mesmo de dar meia noite. Aquela metáfora para o sentimento íntimo dele, apenas uma suposição. Ele me contou, depois de algum tempo de caminhada, que havia perdido um parente para as drogas e que aquilo era muito incompreensível. “Talvez”, eu disse. Nós nunca experimentamos o outro lado, não daria para saber sobre quais injustiças nos foram poupadas enquanto mortos. Ele sorriu e achou aceitável minha ideia, mas continuava tentando não desabar o que provocou meu incomodo.

Luiz era um bom observador e notando meu descontentamento propôs enterrar para sempre sua dor. Aquilo foi tão brilhante que duvidei por alguns segundos que pudesse ser verdade, até que, tropeçando nas palavras, falou sobre visitar pela última vez o dono da sua dor. No caminho nossas pernas tremiam com a ideia de viver algo inusitado, eu estava excitada com a ideia que desde o começo havia sido animadora. E nós não gastamos tempo, fomos logo apressados para a rua de cima combinando como entraríamos sem sermos confundidos com vândalos. Ele pulou primeiro e eu achei bonito o som de sua voz excitada quando finalmente estava do outro lado. Eu também pulei aquele muro convidativo, sem empecilhos algum e que parecia prestes a cair pela umidade e rachaduras. Eu também sorri bonito, para depois calar enquanto me sentia íntima daquele estranho desolado. Ele me abraçou e agradeceu por tê-lo feito companhia, e quando sentimos a hora fomos impulsionados por uma força curiosa que nos empurrou para dentro de toda aquela obra de arte. E quando vimos já estávamos frente a frente com o riso petrificado que causava aquele martírio. Ele chorou e despediu-se dizendo sobre a nobreza de seu amor. Me senti compadecida e beijei o caminho de sua lágrima, pousando nos lábios frios e salgados.

Já havia passado da meia noite. E nós ouvíamos os barulhos da escuridão  em toda sua intensidade e mistério, o ar sendo invadido pelas aves que em um piscar de olhos sumiam deixando seu som ecoando em nossa mente. Nossos corações palpitavam frenéticos, nossos pés se confundiam e nossos olhos atentos eram enganados pelas sombras das árvores. O vento suave repelia-se em nossa pele quente, e aquelas mãos grossas mostraram-se tão sutis e tranquilas que convidaram meu corpo a deitar-se sobre o mármore. Nos permitimos a despedida em meio ao canto do nosso medo, com Luiz deixando morrer sua fúria em minhas entranhas.

Flores exóticas

tumblr_myw3d69eZu1slelazo1_500Ele ainda não havia perdido a mania das persianas abertas, isso trazia para a sala uma claridade insuportável e deprimente pois parecia estar sempre presente mesmo quando anoitecia. O ideal sempre foi um ambiente agradável onde apenas algumas luzes quebrassem o negro com tons secundários, porém nítidos. O meu quarto sempre foi escuro, mesmo que estivéssemos no calor de janeiro em um dia de festa, do lado de dentro jamais poderiam saber o quão discrepante seria a vista lá fora. Havia me tornado um ser enclausurado e acostumado com a própria escuridão, eu jamais precisei de um choque forte para desfazer aquela âncora.

“Muito bem, quais as novidades?”

Eu ainda não havia perdido a mania de manter meu interesse sempre do lado oposto da conversa principal. Eu poderia fazer um relatório fiel sobre o ambiente mas nunca sobre a pessoa com quem conversava, isso explicava a minha decepção com a falta de atributos que meus conhecidos poderiam ter. Entre eles e os móveis eu sempre preferi uma decoração bonita e excêntrica para um dia usar no meu quarto escuro, optando também por tonalidades escuras e o branco que, eventualmente, coincide com ambientes frios. 

No entanto, dessa vez havia algo pertinente a relatar. Eu sabia como eram todos cômodos daquela casa, exceto a varanda onde minha última visita não contava tanto tempo. Pela primeira e derradeira vez pude olhar nos olhos. Naquele dia pude observar como era singelo os trejeitos para organizar as dobras impertinentes da toalha, os dedos arteiros retirando as embalagens que estavam na mesa ou ainda os olhos famintos encarando o lanche natural no fogão. Aquela fala um pouco desafinada de menino entrando na puberdade, quando na verdade já poderia ter um filho nessa fase. Ele sempre havia sido desleixado e moderadamente confuso, o bastante para manter a dose exata de como ser agradável. E só por estar olhando-o já sentia o almoço voltar à garganta como se ali eu pudesse exibir sem nenhum pudor o quanto a companhia exagerada tornava-se o dedo agressivo impulsionando o asco. Ele era a evidência de toda minha miséria, era o estranho que adorava passar o tempo falo de si, coisas fúteis e vazias, com o orgulho de quem conta um ato heroico. Acordar todos os dias não faz de um ninguém, alguém digno de algo.

“Você está calada, eu sempre digo mais do que devo.”

Ofereci o café, embora não tenha sido em grande parte feito por mim, alguns gostos permanecem sempre os mesmos até a última rotina do dia. E se acaso soubéssemos do prelúdio, talvez notaríamos a relevância de certos hábitos. Também seríamos cuidadosos em preservar certos costumes íntimos. Não partilhar nada, nem mesmo o adoçante do café que nos consome. Ele nunca teve filhos ou alguém que lamentasse em seu lugar o desleixo de sempre tão pouco o acumulo exagerado de livros empoeirados que lhe causavam alergia. Eu, em tempo, perguntei se poderia pegar emprestado dois ou três que ainda não estiveram estanciados por tanto tempo até pegar poeira, e levando-os pude notar o encaixe perfeito em meus braços e a forma como foram feitos para mim. Os títulos, a sinopse, algumas páginas amarelas mas ainda sem cheiro. Eu deixaria que eles vivessem para sempre em um canto limpo da minha âncora vazia, vivos e acesos. Enquanto meus passos pintavam a claridade exagerada de negro, e meus olhos registravam o último momento em que o café coloria o carpete da cozinha, e ele por fim transformaria suas últimas frases em um eco soando baixo em meus ouvidos sempre que os livros fossem abertos. Em um final mais impactante do que seus causos sempre os mesmos, certamente o seu primeiro ato heroico foi acompanhar, com os olhos, a minha partida.

Não soube olhar nos olhos

Foi a última vez que Vitor me viu, e naquela ânsia da despedida esquecemos de remarcar a visita seguinte. Estávamos ocupados demais nos beijos e abraços que ignoramos a cordialidade presente em outros. Embora ele ainda fosse uma figura representativa, eu poderia projetar em nós uma aparência jovial e romântica para que pudessem me retirar o rótulo que desmotivava uma aproximação. A verdade é que eu sempre fui uma representação de um ser bem melhor do que eu sou de fato, o que desde o início havia sido por ele notado e registrado. Obviamente existia algo no auge daqueles quarenta anos que dominavam um pouco de coisas que eram naturalmente defeituosas, assim conciliando um convívio menos destrutivo com horas de prazer. Se o olhar era direcionado para uma esfera mais iluminada do meu ser talvez disso obtivesse algum proveito. No entanto, a distribuição era desigual e durante esse processo maçante houveram vezes que mesmo direcionado corretamente eram desferidos horrores em palavras modeladas estrategicamente e nos gestos programados para entonar o agudo da indiferença. Não durou tanto tempo assim como qualquer outra coisa que tenha passado por mim, esgotou-se no tempo necessário para não sobrar nada mesmo diante de uma história que poderia render lamentações. Não houve isso também, não houve um fim trágico que eu pudesse desenhar e transformar em algo bonito, não foi um drama que propiciasse o senso criativo. Não serviu nem para impulsionar a raiva afim de haver crescimento, não lembramos como foi a nossa despedida do mês em que fiz aniversário. Eu sei que as roupas já estavam nas malas assim como todos outros objetos que carregavam uma quantidade ínfima do meu sangue. Foi um processo natural que durou menos do que nosso último orgasmo.

Em ordem

tumblr_mg2ezjhb9Q1r1qj0to1_500Ele mantinha o olhar alheio, e retirava os grãos de areia que estavam em meu pés, enquanto no estante seguinte eu submergia na areia novamente para prolongar o toque. E ele delicadamente pressionava os dedos na minha sola iniciando uma tortura deliciosa de carinho e cócegas que eu mentalmente tentava evitar. Era muito fácil estar ali com ele sem precisar falar sobre algo, eu só precisava dar liberdade para o toque e ele ousar em tentar me ganhar sem a obrigação da justificativa, sem a preocupação de falar sobre o porquê olhar a mulher de biquíni era tão instintivo. Eu também olhava, com o propósito diferente do masculino mas olhava para ela com desejo de vê-la por dentro sem o disfarce natural do ser humano, eu queria vê-la espontânea como eu sentada ao lado de um homem que não é amado. E não é amado por mim pois não sei vê-lo além da linha superficial do toque agressivo, além da transgressão que nos é permitida, além do gosto amargo que eu livremente queria experimentar.

Ele ainda acariciava os meus pés e agora eu já não sentia fome daquilo. Me recolhia. Disse que não eramos de fato bem vindos um ao outro, mas que a invasão havia dado espaço a uma gentileza velada de imaginações. Eu tive de lembrá-lo de tudo que eu era e continuaria sendo, de como a sua carícia enojava-me, do quanto eu me alimentava de guerras e desgraças. Ele teria ali visto o quanto eu era minha, o quanto eu me possuía, sobretudo. E assim poderia ter evitado o descontrole da nossa falta um do outro, do nosso vazio sempre constante e da maneira doente que eu tinha de externar o que eu sentia. Eu poderia talvez forjar sobre eu mesma, mas a imprudência que anula a minha verdade pode ser perigosa e assim eu teria interrompido mais um vínculo ou um vínculo teria interrompido meus passos…
Não permita a resposta.