Você viaja pelas sarjetas, um tanto confuso e estúpido. Você viaja pelas sarjetas e encontra, além do meio do caminho, um senhor embriagado em trajes imundos e a pele suja de tal modo que os pés se confundem com as listras pretas do chinelo e aquele corte profundo de sua sina arde em seus olhos uma amostra do inferno. Você não aperta o passo porque é sensível, apenas finge normalidade; sente cheiro de vômito e urina, sente que a qualquer momento pode lavar a calçada com seu líquido espesso e fétido. Você desconfia, mas a vida segue.
Se você fosse Raimundo não teria a resposta e sequer a mesma pergunta; se fosse Raimundo seria o andarilho, no pior dos casos, seria você mesmo.
Primeira consideração:
Ontem Francisco comprou copos novos de vidro e lavou-os treze vezes. Molhava bem a bucha, mergulhava no sabão gorduroso e despejava gotas de detergente para espumar seus copos. O ritual passou a ser sagrado a cada vez que lavava; enxaguava com cautela e deixava-os no canto da mesa de mármore para que secasse ao ar livre. Poderia tê-los guardado com grande cuidado e uma certa precaução, mas não viu no ato sentido muito nobre, apenas vaidade de um homem ainda jovem.
No instante seguinte estava em seu quarto, um tanto febril e desconsertado; arrumou o seu espaço na cama, pois, imagine você, que os lençóis finos e vagabundos sofriam a confusão do sono dos desesperados. Arrumou porque não conseguiria dormir. Três minutos depois levantou e a barreira imponente entre os personagens tornou-se quase palpável.
Ele não poderia deixar as almofadas amparar seus devaneios.
Segunda consideração:
Fim de tarde e Francisco recolhia os cacos de seus copos de vidro. Grandes lascas e outras discretas, como deveria ser. Recolheu sem jeito, grudando as cascas pequenas na ponta de seu dedo indicador para esfregar no polegar num gesto sutil e medroso, como quem despeja purpurina em roupa de criança. Mas, o que estava entre seus dedos carregava princípios da vida adulta, aquela melodia que embala o passar dos anos e torna o bom homem em avarento e ingrato. Não tão injusto, torna também traído.
Da mesa de mármore para a sacola. Da cozinha para o quarto. Francisco tinha um pedaço preso à garganta e não sabia, encostou o dedo em sua úvula e disse para si mesmo que vomitaria tudo que guardou durante sua curta vida.
Achou besteira e chorou no colo dela.
Terceira consideração:
Francisco deixou as lágrimas infantis pingarem de seus olhos direto para o lençol fino e vagabundo, agora completamente desarrumado. Amparava o rosto com as duas mãos querendo arrancar da pele a navalha que cortava-o por dentro, sem matá-lo apenas a sentir. Se ele fosse Dom Casmurro não teria a resposta, apenas outra pergunta. Em sua mente sempre a ideia fixa, o roteiro do qual não abria mão formular de modo detalhado e arbitrário. Aquele único ponto de vista era demasiadamente tendencioso e perigoso; de tal modo que os acontecimentos colocariam-no à beira de um rio turvo e traiçoeiro. Já sabia o que dizer e como solucionar; se fosse Raimundo, aqui, não teria rima. Se fosse Dom Casmurro, aqui, teria semelhança. Iniciou o mote da pergunta principal, se sim ou se não, se agora era contador de histórias e refém do rio turvo ou se era dissimulado tal qual sugeriram. Francisco demorou a entender que o capítulo final não era resolutivo e apenas concluía por ser inviável prosseguir a mesma história infinitamente, sendo o infinito menor do que ele mesmo.
A mulher dormia. O Outro, que existia e também foi projetado, estava deitado ao seu lado na cama. Francisco aguardava sentado no canto do quarto.
Quarta consideração:
Francisco não tinha peso naquele momento, era tão fino e vagabundo quanto o lençol amarrotado. Piscou algumas vezes e chegou a sonhar com uma navalha cortando sua pele e deixando-o sangrar enquanto tentava, inutilmente, estancar o sangue. Sua respiração pesou por ele, o ideal talvez fosse a duração de quatorze segundos mas ela era tão rápida quanto os tremores que invadiram seu corpo. Despertou por necessidade; já não acreditava em sua sanidade.
Quinta consideração:
Esperou o relógio despertar às seis, esperou o relógio despertar às seis horas e um minuto, esperou seis horas e dois minutos e apenas levantou às seis horas e cinco minutos. Desconsertado, frágil, invasor e corajoso. Aguentou como pode as longas horas, as longas e vazias horas até o veredito. Se sim ou se não. A resposta de Raimundo nunca chega, a história de Casmurro continua, a imagem do Outro deitado na cama ao lado de sua mulher lhe conferia um aspecto moribundo e vitimista. O choro ocorria de quando em quando, até cessar em conformidade. Mas, quando pensava nela com seu Outro em noites em claro afundados em trivialidades, porém de grande intimidade, compartilhando gostos musicais e cinematográficos; escolhendo juntos e em conformidade o filme que assistiriam; trocando caricias; dormindo na mesma cama e partilhando do mesmo sono até que um dos dois acordaria e olharia o outro dormir com receio de chamar para tomar café; e depois, pensava nela oferecendo a toalha de banho para que ele enxugasse seu corpo depois de tê-la feito gozar mais e melhor com sua boca experiente (o oposto do amadorismo do toque dos lábios de Francisco) e dela tê-lo feito gozar, Francisco caía no choro infantil tal qual o de seus quatro anos, parado, besta, em frente aos portões altos e grandes da escola; um completo desconhecido. Alheio do que mais lhe importava.
Chorou até que ela partisse e continuou a chorar em meio ao desarrumado dos lençóis e textos sem revisão.
Última consideração:
Sentado na sarjeta, sem nenhuma alma miserável no espetáculo para desejar não ser Raimundo e continuar sendo Francisco. Respirei fundo e retornei para tirar os lençóis da cama… não sei se conseguirei dormir hoje.